quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Me fazendo manjedoura



É chegado fim de ano. Junto dele, datas comemorativas, festas, férias e uma porção de coisas boas sujerem prosperidade e felicidade. Um novo tempo começa a gerar expectativas e a gente começa a fazer planos para um ano que desejamos ser melhor que este.

É a mística do Natal que se aproxima. É a finitude da condição humana que encontra a mesma luz daquela estrela que brilhou sobre a manjedoura onde nasceu Jesus. O antigo e o novo testamento refazem seus votos sagrados de selar a aliança ao encerrar um tempo escasso de fé e apostar todas suas fichas no menino que está por vir. Usamos nossas poucas palavras para as últimas considerações e começamos a escrever um novo Evangelho, cheio de boas-novas.

Já é tempo de enfeitar as árvores, comprar os presentes, organizar a viajem, rever a família que está distante, arrumar o presépio, etc. É tempo fértil de fazer projeções e ser berço de natalidades assim como foi aquela manjedoura. Foi na manjedoura que Jesus, ao encontrar os braços de Maria pela primeira vez, foi retirado da precariedade que o cercava e levado ao encontro da humanidade que o fez Santo. É tempo de rabiscar uma nova página, de transcender as agruras de nossas miudezas e projetar o novo testamento a partir da realidade concreta que nos cerca. Foi o que Jesus fez. Escolheu a realidade precária de um estábulo para encontrar a Santidade que lhe é própria. É por isso que reviver mais uma vez o Natal, multiplica em mim o desejo de simplicidade. Pois é na simplicidade que Jesus reencontra os caminhos que o levaram à santidade.

Por isso neste Natal, quero reviver as minhas realidades mais precárias. Quero cultivar a esperança de ver Jesus renascido onde as possibilidades parecem ser remotas. Quero viver a simplicidade do silêncio que espera o menino pela primeira vez... A ansiedade em lhe desejar prosperidade mesmo na falta de recursos e quem sabe assim, ser também encontrado pelos braços de Maria a me retirar do que um dia foi precário para revelar a santidade onde eu também fiz manjedoura.

(Gentil Buratti Neto)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Conversando com Deus

Quanto mais o tempo passa, mais convencido fico de que os mais velhos ainda tem muito a nos ensinar. São experiências de vida que não aprendemos na escola, com os amigos ou até mesmo com a conquista de uma excelente bagagem intelectual. Um exemplo disso, é o que foi publicado pelo jornalista Paulo Sant'Ana, no auge dos seus 73 anos de lúcida sabedoria, neste mesmo dia em sua coluna no jornal Zero Hora.

Segue o texto na íntegra:

"Eu sinto que tenho relacionamento com Deus.

Relação com Deus, eu já sabia que tinha.

Mas agora eu sinto que estou me relacionando intimamente com Deus.

Como é que eu sinto? Vou dar um exemplo: quando cai um objeto de minhas mãos no chão, apesar da minha terrível tontura incapacitante, eu me esforço, eu me esforço e ainda consigo com muito sacrifício juntar esse objeto.

Doem-me as pernas e os braços, as juntas, mas eu apanho no chão o objeto.
* * *
O que é que isto tem a ver com meu relacionamento com Deus? Tudo.

É que Deus tem sabido dosar o meu sofrimento. Ele sabe exatamente até onde eu posso suportar.

No dia em que eu não puder mais juntar o objeto do chão, terei morrido. E por enquanto ainda não é o que Deus quer. Deus, sinto, ainda tem planos para mim.

Sendo assim, a fração de sofrimento que Deus está designando para mim está no meu limite.

Se Deus apertar um pouco mais o torniquete, eu morro.
* * *
Assim como Deus nos dá fração de sofrimento, dá-nos também fração de felicidade.

Durante quantas vezes em minha vida (inúmeras), Deus me presenteou com tais êxtases de felicidade, que estive à beira de explodir, de morrer de felicidade.

Mas Deus teve controle e meu deu muitas vezes a dose-limite de felicidade que eu podia suportar.

Deus tem limites e conhece os meus limites.
* * *
O máximo que eu posso suportar é essa tontura incapacitante que tira a minha locomoção, que subtraiu toda a motricidade de meus nervos e músculos e que me faz seguir em frente somente na banguela.

Se passar daí, faleço.

Sob certo aspecto, é muito bom conviver com o sofrimento. Quer-me dizer que sou uma criatura viva, não sou um objeto, uma pedra, um martelo. Faz-me sentir humano, isto é, uma criatura de Deus.

Esse meu sofrimento é suportado pela esperança. Esperança de dias melhores. Pode ser que um dia um médico caído do céu diagnostique essa minha tontura. E acabe com ela em três dias.

É essa esperança que me mantém erguido. Se eu não tivesse essa esperança, já teria soçobrado, como soçobrou esses dias o Tatata Pimentel.
* * *
Quando pararem todos os relógios da minha vida e a voz dos necrológios gritar nos noticiários que morri, em torno de meu caixão quero que meus amigos comentem que ali diante deles está um homem que sofreu muito mas que também foi muito feliz.

Que curtiu profundamente os momentos felizes e que suportou com estoicidade e galhardia os cruentos sofrimentos.

Que teve instantes orgásticos de ventura e dias, meses, anos seguidos de cruciante padecer.

Isto, afinal, é ser homem. Isto, afinal, me diferencia dos batráquios.

Mas enquanto não para o meu coração, estou aqui a cada dia que o sol desponta à espera do que venha pela frente, seja um dilacerante martírio, seja uma felicidade incomparável.

Para isto, vim ao mundo, para sofrer ou para ser venturoso."

(Paulo Sant'Ana)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Coração esquecido


Hoje, a solidão tomou conta de mim. Encontrei-me sozinho com um coração que por hora, foi esquecido. Foi esquecido de mim, das minhas certezas, da minha luz e seguiu sua jornada.

A referência que este coração buscava no meu jeito de ser não é mais a fortaleza que o protegia. Os muros desabaram, as bases ruíram e hoje, ele me reconhece frágil. Fui vencido. Mergulho no mais profundo silêncio e dentro de mim, percorre um coração solitário.

Ele, que já teve lugar seguro, hoje se lança na escuridão de um corpo ainda desconhecido. Coração que se perde pelos labirintos de nossa existência, acaba conhecendo lugares onde a gente nunca pisou. Por isso hoje, deixo-o perder-se de mim. Deixo-o percorrer lugares onde eu nunca tive coragem de chegar. Deixo ele percorrer as profundezas do meu ser. Lanço-o em destino incerto que sempre me amedrontaram e choro em silêncio ao vê-lo reconhecer em mim, lugares que ainda estão vazios. Lugares que ainda eu não habitei.

Hoje, não sei por onde anda este coração. Sinto-o dando gritos dentro de mim, como se quisesse ser encontrado novamente. Não quero esquecê-lo para sempre, nem seria humano abandoná-lo à própria sorte. Mas ele sabe que ainda há muito a ser explorado, há muito a ser conhecido.

Gostaría de estendê-lo a mão e conduzí-lo pelos mesmos caminhos visitados anteriormente, mas o deixo perder-se em novas descobertas para que ele, como Deus, reconheça em mim, lugares aonde ainda não cheguei, minhas maiores profundezas. E depois de ter retornado ao seu devido lugar, que ele possa revelar com a mesma sutileza que lhe é própria, terrenos onde posso fazer morada e revele à quem ali habitar, quem eu realmente sou.

(Gentil Buratti Neto)